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terça-feira, 3 de julho de 2012

ANTOLOGIA DE ENTREVISTAS DE VICENTE FRANZ CECIM SOBRE VIAGEM A ANDARA oO LIVRO INVISÍVEL



TUDO O QUE VOCÊ SEMPRE QUIS
SABER SOBRE ANDARA
E NÃO SABIA A QUEM PERGUNTAR
JESUS LAZO


VICENTE FRANZ CECIM
FALA SOBRE
I
A invenção de Andara
&
seus autores preferidos
II
 A fortuna crítica de Andara
&
o Natural e o Sobrenatural



VICENTE FRANZ CECIM: HomemAve de Andara

 
ENTREVISTA
I

VICENTE FRANZ CECIM
FALA SOBRE
 A INVENÇÃO DE ANDARA
&
SEUS AUTORES PREFERIDOS


Ó ser de espanto:
o que é Andara?

O homem é coisa que vive para dentro e para fora de Si. Para fora, ele é o Ente: o Espanto domado pela Civilização. Para dentro, ele É o Ser: o Puro Espanto de Ser, intocável. A Viagem a Andara caminha assim: desperta para essa vida em Ente e combatendo a Civilização como alienação de sermos, e se sonhando em miragens de sermos que nos libertem para Sermos plenamente, o que já somos, mas estamos encarcerados, vivendo como os Humilhados & Ofendidos de Dostoievski. E quer levar para além desse homem submetido - que se deixa submeter ou é submetido a força e jogos políticos e econômicos ilusórios das Forças Sociais Malignas, malinas, como dizem as Crianças. Em Andara se dá a Alquimia Verbal da transformação do Humano em Umanoh, lançando para trás da palavra esse H inútil, vazio, aspirado, para liberar o Um, o Uno: a abertura para o Ser. Mas aqueles que impelindo e impelidos dos pelas Astúcias das Forças Sociais Malinas a viverem somente para fora a vida como Ente continuarão avançando na única direção que conhecem e lhes é consentida no Ocidente, onde se lê da esquerda para a direta: do calcanhar para a ponta dos dedos – e reencontrarão o H no fim da palavra. Não conseguirão se livrar dele. Que pena. Me entristece. Porque caminhar através da irRealidade, despertante, de Andara me mostrou que a direção oposta é a que nos leva de volta ao nosso Centro Real, indo: da ponta dos dedos para o calcanhar, em demanda de um Real Total que nos transfigure. Pois o homem é, no Profundo, coisa que caminha Por Dentro. Se quiserem, orientalmente: Da direita para a esquerda. Liberando, em Si, o Um do Tudo.
Vicente Franz Cecim

O que é Andara?

O que é Andara? Posso responder como Flaubert respondeu: Madame Bovary c’est moi. Andara sou eu, me vivendo em sonhos de Escritura de mim mesmo.


Isso é Andara em relação a você. E o que é Andara em relação à Literatura?

Em relação à Literatura, Andara não é mais Literatura, é Escritura e desvio ontointrospectivo, em relação à Literatura.


E o que é isso? Apresentando Biografia de uma Árvore de Fabrício Carpinejar, você falou em a Literatura praticada como ontologia, a Palavra praticada como vida. É isso que tenta em Andara?

Sim. Andara? Andara é Coisa que viaja por dentro e no sentido inverso: quer retornar dos dedos dos pés ao calcanhar de Aquiles do homem, ali onde ele é mais sensível à Hipótese Onírica e Lúdica e Naturalmente Sagrada da vida. Andara quer a Origem, o Antes do ponto em que tudo começou a se perder do Todo, o ponto oculto de nós, homens, que só se consente a nós em Relances, Vislumbres.


E esses vislumbres em Andara permitem ver o que?

O Onde e o Quando o natural e o sobrenatural ainda não haviam sido deformados como oposições que se excluem mutuamente.


Esse ponto seria aquele que Breton mencionou nos Manifestos Surrealistas, ponto em que cessam todas as contradições?

Mas, antes, Plotino já havia falado isso. Está lá, na sua famosa Circunferência que é Infinita porque seu centro está em toda parte. E não só Plotino. É uma ancestral percepção iniciática.


Andara então se inscreve nessa Tradição?

Digamos que Andara se opõe à Matriz dos dualismos. De todos os dualismos. Ela é Demanda do Um através do Vários.


Mas se vale de opostos. A ave, a serpente. Está nos seus livros de Andara.

Sim. Mas se se vale do permanente embate entre as Luzes e as Trevas, entre a Asa e a Serpente, desde o primeiro livro visível escrito através de mim em 1979, justamente chamado A asa e a serpente, até o mais recente livro de Andara, o ainda inédito ‘O escuro da semente’, que está terminando de se escrever, agora em 2001, através de mim, é só para negar, não o Imanente pelo Transcendente, nem o contrário, mas as deformações maniqueístas que a Civilização foi nos legando e impondo a nós. Andara é um ir sem ir, em demanda do Ponto Vélico onde Visível e Invisível se engendram mutuamente. Aquele Ponto Vélico do qual uma vez Victor Hugo disse que, numa embarcação, é o lugar de convergência, ponto de intersecção misterioso até para o construtor da embarcação, onde se somam as forças dispersas em todo o velame desfraldado.


Andara então busca esse ponto de convergência misterioso. Misterioso até para você, o construtor do barco de Andara?

Sim. Misterioso sobretudo para mim, que sou o que menos sei de Andara. Mero Instrumento que ela usa para se fazer existir, como o Castelo de Kubla Khan usou Kubla Khan em sonhos para tentar uma primeira vez existir, mas ficou reduzido a ruínas, e depois tentou existir uma segunda vez sob a forma de um poema do Castelo de Kubla Khan usando Coleridge, mas o poema ficou inacabado, ruína verbal, porque Coleridge interrompeu a transcrição para o papel do poema do Castelo sonhado não em pedras, mas desta vez em Palavras, para ir atender seu alfaiate que batia na porta e quando voltou, havia esquecido todo o resto do poema. É no que dá suspender por um instante a Vigília Onírica e permitir que penetre a Vigília Prosaica dos cotidianos. Borges, que gostava de contar essa história exemplar, com humor metafísico perguntava: Qual será a terceira forma que isso que tenta existir assumirá? Talvez essa terceira forma seja Andara. Pelo menos isso eu sei de Andara: que ela me usa para se existir.


Mas você também não está buscando, através da invenção de Andara, respostas para as eternas indagações humanas? É onde busca, onde Andara busca em você, onde você busca em Andara?

Andara busca Ali, Lá, Aqui, seja onde for. E vai me levando com ela. Andara quer atingir aquele lugar do qual Eckhart diz: Ali onde os anjos supremos, a mosca e a alma são semelhantes. Está lá, transcrito em Os animais da terra, o segundo livro visível de Andara, de 1980. É uma busca antiga, como se vê. Um voo bem antigo em mim, através de mim.


Mas em Andara você a certa altura diz: Embora a ave mais bela seja aquela que se recusa a voar. Cadê o voo, para onde voou?

Para isso, para se dar a essa Busca, Andara tinha que ser, e nisso se tornou, Lugar de Nenhum Lugar, o que equivalesse a dizer Lugar de Todos os Lugares.


Você é filho nativo da Amazônia, que você costuma chamar de A Floresta Sagrada. Um dia até enviou um e-mail dizendo que a Amazônia era para você o que a Floresta Negra foi para Heidegger, lembra?

Andara é Geografia Verbal, dialogando com a Geografia Física da Amazônia, que, por ser Lugar de Natureza, é Lugar do Sagrado em epifania. Se não existisse a Amazônia e não se desse a circunstância fatal de eu ter nascido lá, talvez não houvesse Andara. Certamente, não: não haveria Andara. Então, Andara começou se nutrindo da Amazônia. Da Realidade da Amazônia. Mas da Realidade Onírica da Amazônia. A Amazônia é um tecido infindável de lendas, fábulas. Lá, aqui, parece não haver fronteiras muito nítidas demarcando onde termina a Realidade e começa o Sonho, e vice-versa. Em Andara também é assim. Mas não falo da Amazônia que aparece, mimetizada, na Literatura de Cultura, a erudita, a que se faz escrevendo palavras: falo da literatura Oral da região. Dessas raízes é que foi nascendo a não-árvore de Andara. Árvore que se iniciou como Árvore de Palavras, mas aos poucos foi buscando se tornar o que hoje é: uma não-Árvore de Palavras. Árvore Invisível. Esse tipo de Árvore, ninguém pode incendiar e reduzir a cinzas com fazem com as árvores da Amazônia.


Você diz, então, que em relação à sua Amazônia, Andara é região verbal. Uma outra região.

Na Invenção de Andara, se retoma o sentido do Verbo como Sopro criador. Novamente o Demiurgo se faz presente. Mas o Demiurgo, neste caso, é só um homem: eu: coisa enquanto Imanente, efêmera. O que não impede que haja um Ímã em mim, pulsando pelo Transcendente. Não posso soprar o barro e criar vida, mas posso soprar as Palavras de dentro de mim e criar um Mundo Verbal. Nesse sopro, não digo: Faça-se a Luz. Apenas oro por ela. Nesse mundo, de Andara, não sopro: Desfaçam-se as Trevas. Apenas rogo a elas, como Caminho de segredos por algum motivo necessário, que, se desvelando, vão me deixando passar. Comigo vai todo o Cortejo de Neblinas de Andara.


Em um dos seus livros visíveis você diz: Personagem, coisa que, aliás, não existe e aqui está a noção de fantasma no lugar de personagem. Quem lhe acompanha então nesse cortejo de Andara?

Pois em Andara já não há personagens, coisas, acontecimentos: há seres Neblinas, coisas Neblinas, sombras de acontecimentos imersos em rarefeitas Neblinas.


Andara vem do verbo andar?

Vêm? Será? Eu mesmo às vezes me pergunto isso: Andara vem do verbo Andar? Não sei, só sei que também quanto a isso nada sei. São sempre obscuras e encerradas em si as coisas de Andara. Vida ama ocultar-se, dizia Heráclito. Eu, como um outro Obscuro, um obscuro mais selvagem, também me surpreendo frequentemente me dizendo, a cada novo livro visível que estou escrevendo de Andara: Andara ama ocultar-se. E rio comigo mesmo, mas às vezes me intimida, me dá medo. É uma convivência, essa minha com Andara, com muitas Alegrias que eu não encontraria em nenhum outro lugar, mas também muito cheia de espessuras e súbitas fendas de entrevistas revelações. Na obscuridade o ouro reluz, dizia Pound. E Maupassant, tão belo e hoje tão injustamente esquecido, falava da presença insidiosa e temível de um Outro, oculto, por trás dele quando escrevia. Mas jovem, eu muitas vezes também percebi esse Outro, lendo por trás dos meus ombros o que eu escrevia. Se era à noite, sozinho na madrugada, eu parava de escrever e ia dormir abraçado à mulher quem fosse na ocasião, assustado. Foram os primórdios de uma pré-Andara, pequeno contos que eu escrevia, ensaiando o Passo para penetrar em Andara e nela me perder, me fundir para sempre, como hoje estou.


Mas você ainda não respondeu. Andara vem do verbo andar? Ou ‘ela' também lhe proíbe de dizer isso? É um segredo entre vocês dois: criador e criatura?

Pois é. Mas quem é o Criador, quem é a Criatura? Essa é uma outra das raras coisas que eu sei de Andara: Ela é o Criador, eu sou a Criatura. Em nosso caso, toda a história da Literatura se inverte. No livro Silencioso como o Paraíso, que tem duas entradas, duas capas, duas frentes, dois inícios e dois fins, mas nenhuma saída, eu sussurrei isso para o leitor, quase pelas costas de Andara. Numa das Entradas do livro, coloquei uma frase de Ângelus Silesius: A criatura é o seu gosto de brincar. E na outra Entrada outra frase de Ângelus Silesius: À divindade agrada o jogo de criar. Fiz como Dante, que pôs aquele aviso terrível na porta do Inferno: Ó vós que entrais, deixai toda a Esperança. Mas em Andara não há nada a temer: exceto o Temor e o Tremor, citando o título do livro de Kierkgaard, de nos vermos a nós mesmos e à Vida que, em seu Pudor, porque a Vida é uma coisa feminina e casta e cheia de Pudor, sob as Aparências, sob sua Epiderme dissimulada, se oculta de nós.


Sim, sim. Mas você ainda não disse se o nome Andara vem do verbo andar. Você está proibido, por Andara, também de comer do Fruto Proibido?

Ah, me lembrou O Eterno Adão. Vocês conhecem? Uma novela póstuma espantosa de um outro e oculto Júlio Verne, que ficou velada pelo êxito das 20 mil léguas submarinas, uma obra prima extraordinária.A família, depois da morte dele, escondeu do mundo. Mas O Eterno Adão é uma outra coisa, mais secreta, como aquele O Castelo dos Cárpatos, que ele ainda publicou em vida. Atroz poesia, como o Nosferatus de Murnau.


Bem, você não pode responder. Nós entendemos isso. Andara é o Criador e você apenas a Criatura, e o Criador lhe proíbe de responder. Mudemos de assunto, então. Tudo bem assim?

 Pois é. Se Andara vem de Andar, do verbo andar. Posso tentar responder isso. Vejamos, por onde começar? Pelo menos não pensei nisso quando emergiu em mim sua Geografia Verbal e foi tomando corpo. Mas agora, de tanto me perguntarem, passei eu mesmo a me fazer a pergunta: Andara provém do verbo Andar? Possa ser, acho que sim. Afinal, é Viagem, não é?: a Viagem a Andara. Peregrinação, Lugar de peregrinações através dos livros visíveis que escrevo de Andara. Mas também sendo o não-livro, o Livro Invisível que não escrevo, que vai se formando como Livro Neblina a partir dos livros escritos e que só pode ser lido pelo leitor em Imaginação. No começo de Viagem a Andara oO livro invisível eu disse: Situação dos livros de Andara: condenados à visibilidade para que Andara, a viagem ela mesma, possa existir como pura ilusão. Então, disso nasce uma delicada Teia de Espelhos e quase insuportável Tensão: Tensão que só pudesse ser manifestada se Andara se desse em um outro tempoespaço, espaçotempo que não mais o da Literatura instalada ora no Presente, ora no Passado, ora no Futuro, mesmo quando ela, a Literatura, mescla todos esses modos de tempo numa só Espessura de Tempo. Espessuras comunicantes. Para Andara, nada disso resolvia mais: a sua exigência extrema, a exigência que me fazia e continua fazendo, desde seu início até hoje, e lá se vão já 25 anos, era a de uma Abolição de qualquer Espessura. Sob essa pressão, aonde ela me conduziu aos meus limites, junto com os deslimites dela, os deslimites em que queria se instaurar, explodi para fora e para dentro de mim num Tempo Verbal que fosse o Único em que Andara pudesse se dar, não se dando, e falar não se falando, entre o Invisível e o Visível: o Tempo da Hipótese.


Hipótese no sentido de uma abertura total a todas as possibilidades? Mesmo as que pareçam mais improváveis?

Sim, é isso. E mais: mesmo as que parecem impossíveis. Essa Abertura Total. Andar leva a ando, andei, andarei. Andara nunca quis nada disso, desses andares apaziguadores das palavras. Andara quer o Sonho Verbal dos sendo, fosse, seria, estaria, haveria de, houvesse, enfim, do: Andara. Eu Andara, tu Andaras, ele Andara. Por onde andaríamos, andássemos todos quando andamos em Andara, através de Andara, através dos livros visíveis de Andara? E andando através de nós, sempre, o Livro Invisível de Andara? Um livro visível de Andara começa assim: Fosse uma vez em Andara. Através de Andara, vivo repetindo, não se irá à parte alguma. Pois o sentido da Viagem a Andara é a Viagem em si mesma. A si mesma. Em Silencioso como o Paraíso, a Viagem se inverte no meio do livro e o livro começa a voltar sobre si mesmo: então, vejam, quem ler esse livro e depois for ler os que vieram depois ele, estará regressando ao início da Viagem a Andara. Mas não ao primeiro livro visível, A asa e serpente – porque estará lendo os novos livros. E assim, não atinge nem sai de Viagem a Andara oO livro invisível, que é oniausente durante a Viagem inteira. E não tem começo nem fim.


Então, aonde vamos através de Andara?

Através de Andara vamos, de alguma forma vamos. Sim. Ou não vamos? Nunca fomos, nunca iremos? Também parece que Sim. Mas vamos num ir sem ir, num ir ficando, e permanecemos num ficar indo, a meta esteja atrás, ora adiante. Ora meta alguma, ora todas as metas. Quais? Mas quais? A meta sem meta com meta, por isso, Andara é a Viagem ela mesma, em si. Em Andara, estejamos indo, sempre, inapelavelmente, não há remédio, através de Luzes, através de Sombras. Neblinas humanas através de Neblina de Mundo. Andara é Penumbra Humana. Andara? Para tentar dizê-la de uma só vez e mais uma vez, claro que inutilmente, pois ela nunca se entrega inteiramente, Andara é, enfim: Demanda de Penumbra: Demanda do Graal dessa luz crepuscular e ao mesmo tempo dessa luz de Aurora, dessa entreluz onde já nenhum Sol exterior brilha mais ocultando a Luz ao mesmo tempo Natural e Sobrenatural que todas coisas, tudo, emite de Si, e disso já falava Paracelso, e é um Saber dos Alquimistas, se dando a perceber, se dando a conhecer em suas Identidades Veladas. Em Andara, estamos cegos para ver. Ou, talvez, fiquemos cegos por tanto ver Clarões na Noite em que tudo é Chama Oculta. Por isso eu disse no começo da nossa Entrevista: Andara já não é mais o que um dia foi a Literatura, como uma certa Tradição, se espessando em nós, nos acostumou a aceitar. Teve que ser um outro tecido mais fino de Escritura para poder se fazer desvio ontológico, introspectivo, em relação ao homem e em relação à vida inteira, a Manifesta e a Oculta. Em relação à Literatura, como prática da palavra designativa, palavra nefasta que cada vez mais se instala entre nós, Andara só sabe falar a Voz das Perguntas, muita perguntas. Mas de um certo jeito que quase abole a necessidade de respostas. As respostas já estando contidas nas perguntas, ao serem formuladas.


Andara então, todos os livros de Andara, são uma imensa pergunta?

Sim. Andara é toda ela Escritura de Pergunta, mas que se inventa mundo, mundo verbal, não só após ter recebido as respostas, e sim no próprio ato de perguntar. De se perguntar suas respostas à Vida. A Surda que nos Ouve. Lá no começo, com Flaubert, eu disse que Andara sou eu. Ah, e o que sou eu?


Sim, nós também gostaríamos de saber. Quem, ou o que, é você?

Eu? Eu sou um ser de espanto, um ser despanto, um serdespanto. Já disse isso antes. Está no livro visível Ó Serdespanto. Eu sou esse Serdespanto. Coisa aérea entre Céu e Terra, imerso em Perplexidades, as nossas Perplexidades de Existirmos em Homem. Haja, também, as Perplexidades das coisas em se existirem em Montanhas, Peixe, Centopéias, Estrelas, Galáxias e das Sombras em se existirem Sombras. Pois eu sou Serdespanto. Como tudo é. E sou também Os animais da terra, título do segundo livro de Andara, todos os animais da terra. Assim também venho sendo desde esse livro, de 1981. Também sou a Asa e sou a Serpente. Em Andara, sou, somos, estamos sendo sempre Queda e Ascensão, Ascensões e Quedas.


Bem, qual é a mais abrangente e a mais clara definição de Andara, se isso lhe é permitido dizer? Com todo o respeito pela sua misteriosa Andara. 

Queria terminar, depois de Flaubert, com Cervantes. Cervantes disse melhor do que eu próprio, por mais que sempre tente, posso dizer, o que é Andara, o que fosse, o seja Andara. E o que é, num sentido vertiginoso, de Queda para o Alto, essencialmente a Literatura. Mas para isso ela, a Literatura, teve que vir se ultrapassando em Escritura. E, no Livro Invisível de Andara, eu próprio me descubro usado por essas incessantes ultrapassagens, como porta-voz de um outro Advento, este, um Advento Infinito, infinitamente além, ou aquém, até mesmo da Escritura, a Escritura sendo esse espaçotempo verbal tão arduamente conquistado, aos poucos, e que se dá em plena liberdade de Invenção das Palavras e das Coisas, para ficar só nos escritores que mantiveram e mantém contato com o ato de contar, como é o meu caso, em Andara, porque eu continuo contando histórias, embora sejam as histórias já quase não-histórias de Andara e contadas da maneira oscilante entre o se dizer e o não-se dizer de Andara, isto é: o texto se tornando o Espetáculo, a atração da Noite que a Penumbra Andara encena, e a história ou ainda quase-história contada, se invertendo os pólos, a sua Consciência.


Então, apesar de toda a inovação que Andara traz para a Literatura, você ainda conta histórias?

Sim. Não há nada de negativo em contar histórias, o homem ainda está no estágio de ouvir histórias, de se contar histórias, a Amazônia e as histórias fantásticas que a minha mãe Yara Cecim, também escritora, me contava para fazer dormir, me ensinaram isso: a amar e respeitar isso, as histórias dos seres, dos homens, da vida. Eu ia adormecendo e mergulhava nessas histórias da Infância, me tornava também personagem delas. Se apagava a fronteira entre a Vigília Diurna e o Sonhar Noturno. Isso também nutriu, certamente nutriu muito Andara, quando eu ainda nem suspeitava que ela me viesse um dia, como acabou vindo. A própria Vida talvez não seja mais do que uma História que vivemos como personagens de um Autor desconhecido. Não necessariamente aquela história cheia de Som e Fúria, contada por um idiota, e que não significa nada, como disse Shakespeare. Isso, não. Não devemos fazer definições definitivas sobre nada. Mas no sentido em que o mesmo Shakespeare disse que somos feito do mesmo estofo de que são feitos os sonhos, uma percepção muito medieval. Andara, aliás, e isso eu posso dizer: é uma coisa muito medieval. Eu sou um homem medieval, de uma certa maneira. A Idade Média, sem que eu saiba porque, sempre me atraiu.


Você ainda disse se Andara vem de andar, mas pode dizer quais os seus autores preferidas?

Então, esses autores, precursores e consolidadores de uma Literatura de Escritura, antecipadores e consolidadores de uma compreensão sempre mais e mais libertária da Literatura como Simulacro da Viva Vivida, às vezes revelador, às vezes mais velador da vida ainda, esses escritores que foram grandes encenadores de Alegorias, Fábulas, Parábolas, mestres da Metáfora viva mais viva que a Vida Vivida, agentes iniciatórios na conscientização do Sermos o Sonho de Sermos, rompedores dos grilhões da Mimética, superadores do homo faber no fazer literário pelo homo sapiens, superadores do homo sapiens no saber literário pelo homo ludens, povoadores do Onírico, transeuntes do humano ao que já chamo de o Umanoh, gente, para ficarmos só no denso Ocidente, ah, tão pouco sabemos do sutil Oriente, e no Ocidente mais recente, como: o Chrétien de Troyes e Wolfram Von Eschenbach do ciclo da Demanda do Graal, o Baltazar Gracián do El Criticón, John Bunyan, Rabelais, Cervantes, Swift, o intolerado Sade, Lawrence Stern, Kleist, também os narradores Novalis de Saïs e Hoelderlin de Hiperión, Lewis Carroll, os alegóricos Melville e Hawthorne, o Horace Walpolle de O Castelo de Otranto, o Lautréamont no limite do narrativo de Maldoror ,Dostoiévski, claro, por suas espreitas à Alma encerrada no Corpo, e o a todos superior: o milagre Kafka, e mais Bruno Schulz, encantador, Gyula Krúdy, tão encantador quanto ele, Proust, Céline, Musil, o diáfano taoista Hermann Hesse, Jean Giono, Witold Gombrowicz, Julien Grac, Broch, sobretudo o de A morte de Virgílio, Malcolm Lowry de Sob o Vulcão, o infinito rarefeito Beckett, que sabe um Kafka retornado para transpassar a Linguagem, e o zen Salinger, estranhador de cotidianos, o humilde desconhecido maravilhoso nigeriano Amos Tutuola, que só aprendeu a escrever depois de adulto, autor perturbador de O bebedor do vinho de palmeira -e nesse ponto também queria lembrar autores desprezados pelo críticos - ah os críticos, o que fazer deles: eu só me sinto bem na companhia de Blanchot – autores que eu, nem um pouco preocupado com os critérios de qualidade literária porque o que me Busca não quer de mim Talento, amo muito e muito me nutriram para Andara, não exatamente por sua escrita, mas como aberturas para todos os Imaginários: Stephan Wull, que fez vulgares livros delirantes de ficção científica como La Mort Vivant/A Cadeia das 7, em português: metáfora juvenil em mim antecipadora da Metáfora Central de Andara: a convergência, para o Um, do Vários em que se dispersou. Quem já leu Andara e por acaso Wull saberá por que falo isso, embora não vá conseguir ver uma relação. E já que chegamos a esse considerado gênero menor, mas na verdade um dos mais libertários territórios entreabertos pela Literatura como sonda cega que se atira à frente de si mesma, e o futuro me confirmará, a Literatura de Antecipação: e cito Herbert Georges Wells, sobretudo o daquele período fecundo que durou uns dez anos, na transição do século XIX para o XX, quando escreveu O homem invisível, A máquina  do tempo, O alimento dos deuses, A ilha do doutor Moreau, Os dias do cometa, a guerra dos mundos, Uma história dos tempos futuros, livros- miragens do que pudesse ser a vida em seus des-dobramentos, assim mesmo, de desdobrar suas Dobras. E Rulfo, no México, Guimarães Rosa, no Brasil. Esses dois últimos, imensos Xamãs. E há ainda Borges, que nos contorce pelos seus labirintos. Não falei em Joyce. Nem esclareço porque, mas então digo: Joyce. Também poderia dizer outros nomes: Faulkner, Clarice Lispector, Poe. Outros. Lembro preferentemente aqueles que foram gradualmente pegando o Desvio da Literatura para a Escritura, fosse através da progressiva ampliação do Imaginário em demanda de seus Semlimites, fosse através da progressiva desnutrição das cristalizações das palavras, fosse pela contaminação que introduziram com a inserção do hemisfério oriental na Literatura ocidental. Com esses contaminadores, ganhamos em Ausências, ou em Presenças apenas Pressentidas. E aí está Edmond Jabès lendo, no Livro, o Livro enquanto Vida, não é? Esses, ou quase todos eles, são precursores, e indo para ser ultrapassadores da própria Escritura. Mas eu falava de Andara ter estranhamente me eleito seu porta-voz de um Advento Infinito, infinitamente além, ou aquém, até mesmo da Escritura. Será que posso contar?


Conta, conta.

Pois bem. Andara, o que ela parece mais querer, é o Advento de uma Literatura Fantasma. Fantasma como são os seres de Neblina que a percorrem. Mas ainda mais sutil que eles. Andara, os livros escritos, os livros visíveis de Andara, ainda pudessem ser lidos por quem assim quiser, ou não puder mais que isso, como Literatura Fantástica. Mas o Livro Invisível Andara, aquele que não-é escrito, aquele que já é não-livro, esse: Isso, já é Literatura Fantasma. Literatura de Ausência. Está para a Literatura como os números trans-finitos de Georg Cantor, talvez eu pudesse comparar, que se iniciam ali, seja Onde isso for, onde os números finitos se acabam. Literatura Fantasma é Literatura de Ausência de Literatura. De Ausência até mesmo da Presença Rarefeita da Escritura, por mais rarefeita que ela seja. Está num além em nós. Nietzsche perguntando pela voz de Zaratustra: O homem é coisa ultrapassável, o que fizeste para ultrapassar o homem, o que fizeste para atingir o Além do Homem? Pois ele escreveu: ‘über mensh’, que é melhor para todos entendermos como: Além do Homem. Mas essa é uma visão ocidental, a visão ocidental de Nietzsche. Andara se desampara é no Tao. Andara quisesse fosse as Outras três partes do discurso que se mantém secretas, não são postas em movimento, mencionadas pelo Hino do Rig Veda, que diz que só conhecemos a quarta, que é a língua dos homens. Andara não busca nada assim, como neste trecho de Nietzsche, com um sentido único de Ida: Andara busca, através do Homem, além Umanoh: o Umano - tanto o além quanto o aquém do humano Mas eu queria terminar com Cervantes, depois de termos iniciarmos com Flaubert, de quem prefiro As tentações de Santo Antão. Andara sou eu. De uma certa forma, sim. Mas há uma definição melhor de Andara por Cervantes. Está lá, na abertura daquele seu, sobrenaturalmente Belo, Os trabalhos de Persiles e Sigismunda, obra que comovidamente ele terminou no que chamam seu leito de morte, se indo, morrendo, embora em vez de Morte ou prefira a palavra Metamorfose – onde escreveu a última página, se despedindo do Leitor e informando que estava terminando naquele ponto o livro porque o Livro da sua vida estava, naquele ponto da sua viagem, também fechando suas páginas visíveis. Aquela Voz é Andara.


Qual voz?

Os trabalhos de Persiles e Sigismunda começam com uma voz gritando do fundo da terra, se lançando para superfície da Terra e para o alto e para a luz, lá encima, lá fora da Escuridão em que se encontra aquele que depois viremos a saber que era Persiles encerrado numa Masmorra no subsolo. Mas no início, só o que sabemos é que é uma Voz e, depois, ficamos sabendo que é voz humana. A Literatura é essa Voz que se lança do Escuro. Essa Voz que busca ascender da Escuridão é a Literatura buscando ascender para o claro-escuro da Escritura. É a Voz da Escritura querendo ascender para o Além do claro-escuro da Escritura. É também a vozinha débil dos livros visíveis de Escritura de Andara já querendo é o AlémAquém da Escritura, no Livro Invisível. Essa Voz é a Voz Não-Voz do Livro Invisível de Andara. Essa não-Voz, ela é que é a Voz não-voz essencial de Andara. E parece que a única que interessa a Ela. Trans-silêncio. As páginas antes cobertas pelos Signos da Palavra buscando o em-branco da Ausência de Palavras.


Então, Andara é isso. Essa não-Voz. Voz-Silêncio.

Sim. Mas estou tentando, ainda, salvar as Palavras da extinção total em Andara, pela Iconescritura. Superação talvez possível da Escritura, sem que seja necessário o extermínio das Palavras. É o que estou tentando agora no livro, ainda mais um livro visível, O escuro da semente. E em outro que está vindo, oÓ: Desnutrir a pedra. Devolver as Palavras à sua mais inocente Origem de Imagens. Quem sabe se possa ter nisso alguma Esperança? Enquanto isso, Andara? Andara continua sendo travessia de Penumbras. Escrita, é Diálogo com Sombras, já não-escrita é despedida das Sombras - que cada vez mais se ausentam das Palavras sobre o papel.


Paramos por aqui. Esperamos que você não tenha falado demais e dito coisas que não devia.

Eu também. Andara, ah.




 VICENTE FRANZ CECIM: HomemÁrvore de Andara


 
ENTREVISTA
II

VICENTE FRANZ CECIM
FALA SOBRE
 A FORTUNA CRÍTICA DE ANDARA
  &
 O NATURAL E O SOBRENATURAL

 
Ó Serdespanto:
 O natural é sobrenatural?

Tudo vem como sombra do Um e para o Um volta como sombra. Aqui, na breve Residência, a vida, imersos nesta luz cheia de penumbras em que somos e não-somos, pois permanecemos sendo lá no Um enquanto aqui até parece que somos, as sombras estão no Vários, e se tornam coisas
Vicente Franz Cecim/
K: O escuro da semente *

* Lançado em Portugal em 2005, pela Ver o Verso,
após a primeira edição desta entrevista
permanece inédito no Brasil, onde Cecim,
de 1994, ano de Silencioso como o Paraíso, Iluminuras,
a 2012, editou somente um novo livro de Andara:
oÓ: Desnutrir a pedra, Tessituras, 2008.




Vicente Franz Cecim é um sucesso de crítica, no Brasil, apesar da resistência conservadora dos editores nacionais às rebeldias de sua linguagem, e em Portugal, onde há quase duas décadas embora nem tanto de público, mas parece não dar a menor importância para esse fato de diz:

- Não escrevo para agradar, escrevo para libertar o homem, a vida pequena para a Vida.

Os especialistas atribuem isso às características inovadoras da sua literatura. Segundo já foi dito, no caldeirão de uma escrita em absoluta liberdade, a literatura como alquimia, em sua obra o autor abole as fronteiras entre a prosa e a poesia, funde o natural e o sobrenatural e incorpora o profano ao sagrado, para se lançar numa intensa busca metafísica do sentido do ser e da vida. Cecim, por sua vez, diz que os livros visíveis de Andara, que escreve em livros, ainda podem ser lidos como literatura fantástica. Mas ao irem se reunindo em Viagem a Andara, o livro invisível - que é o título geral de toda a sua obra - o não-livro que o autor não escreve e que vai se formando à medida que os livros individuais de Andara vão sendo escritos, o resultado final, segundo ele, já é literatura fantasma. Nesta entrevista, Cecim fala do seu novo livro recém-lançado em Portugal, Ò Serdespanto (Íman Edições, Lisboa, 2001), que a crítica portuguesa apontou como o segundo melhor livro do ano, em consulta feita pelo jornal Público, da Amazônia transfigurada em Andara, dos limites da literatura e do advento de uma literatura fantasma.
Já não faço literatura, faço Escritura, ele diz. E afirma:

 - O natural é sobrenatural.


O que é o livro Ó Serdespanto, ou talvez fosse mais apropriado perguntar: o que é um ser de espanto?

Serdespanto sou eu, és tu, é quem está lendo esta entrevista. Seres de espanto somos todos nós. Não é difícil ser um serdespanto, para isso basta nascer, surgir na vida como ser humano. Um trecho do livro nos diz assim: Em Andara, é quando os homens esperam um anoitecer mais calmo que vêm as noites da vida nos lançar pedras de sombras e asas de areia vêm nos açoitar. Sendo assim em Andara: ó ser de espanto, ó ser despanto, ó serdespanto. Passando, pois, aquele homem a se chamar assim. Serdespanto. Pois esse o nome que lhe deram quando ele nasceu, diz-se disso, a mãe, essa que denomina uma parte de si que sai de si aqui para fora, humanamente, para ser outro ser. Um outro espanto isso, deve-se reconhecer com melancolias, resignações, suspiros. Isso de nascer. Em Andara, pois. Mais um tendo vindo. De rastros, humano.


Vamos falar um pouco mais a respeito de Ó Serdespanto: ser de espanto. A expressão Ó, por si só, já demonstra sentimento de espanto.

O livro Ó Serdespanto já acabou de se falar, por si próprio, nesta entrevista. E um livro não sabe falar outra linguagem além daquela em que foi escrito, é preferível não falarmos mais por ele.


E Andara, o que é Andara?

Andara é região imaginária, toda ela onírica, que eu criei, ou que quis se criar através de mim, de qualquer maneira: que eu sonhei, mas sua matéria prima é a Amazônia, a Floresta Sagrada onde eu nasci, com suas águas, seus peixes, suas aves, seus insetos, seus animais, suas árvores. Só que em Andara tudo pode acontecer e ainda mais do que acontece na Amazônica, que em si já é uma região naturalmente encantada: árvores podem falar com os homens, aves que caem do céu se transformam instantaneamente em terra, retornando ao pó, o vento vem nos contar histórias, tu podes te deparar com uma mulher alada como Caminá, do segundo livro visível de Andara, Os animais da terra, há muitos outros seres alados em Andara, talvez anjos ou sejam demônios, que descem do céu com suas asas negras, com suas asas brancas para conviver com os seres humanos. Também é grande a presença de serpentes em Andara. Pois o que está no Alto é como o que está Embaixo, como disse Hermes Trimegisto. Andara é lugar de sonhar, em Andara tudo é possível, Andara é a imaginação em liberdade, Andara quer abolir a razão do ato de escrever. Andara é quase um manifesto prático contra a literatura regionalista, mimética, que geralmente se limitava a copiar, e copiar mal, a realidade amazônica. Mas a realidade é oculta em si mesmo: se disfarça em sua epiderme. Fazer literatura assim é ampliar o ilusório. Heráclito, que entendia dessa Obscuridade, já nós advertiu há quase 25 séculos atrás: - Vida ama ocultar-se. Andara quis romper, desde o primeiro livro, A asa e a serpente, de 1979, com essa tradição que quer nos reduzir a criadores de uma literatura superficial, anedótica, supérflua, com raras e parciais exceções. Quais? Só cito nomes quando chegar o Dia do Juízo Final, então os bons serão separados dos maus, segundo as Escrituras. Por enquanto, digo apenas isso. Escrever, sonhar os livros de Andara foi uma opção muito solitária, e do que havia sido escrito aqui na Amazônia, pelos escritores cultos, chamemos assim, eu não me nutri de quase nada. Meu único alimento foi a literatura oral, as lendas, os mitos, que aprendi desde criança a admirar através da minha mãe, Yara Cecim, hoje também escritora, que nos contava, não os contos dos irmãos Grimm, de Perrault, que tem coisas geniais, de Andersen, que é todo ele um gênio, mas umas histórias delirantes da região, para nos fazer dormir, a mim e aos meus irmãos. O sono vinha, mas como um portal de acesso a todo esse mundo feérico. Não sabíamos mais o que era natural e o que era sobrenatural.


Ó Serdespanto faz parte de um longo projeto literário, que é Viagem a Andara, o seu livro invisível. Livro que contém outros livros, que são histórias imaginárias fisgadas de uma memória guardada da infância, vivida na Amazônia. Andara é uma história infinita?

Não se pode dizer que essa Andara que se criou através de mim é a Amazônia, não é a verdade. E dizer que a Amazônia é Andara, também não é a verdade. Não há uma verdade única nesse caso. Onde está a verdade, então? Se tu olhares com olhos de alquimista, que são os únicos que interessam, vais perceber que o que se dá é uma transmutação: a Amazônia é a matéria prima, Andara é o resultado. O que sobra, fica de fora: é o que os alquimistas chamavam resídua. A transmutação da Amazônia em Andara deixou muita resídua, material imprestável para literatura. E como em toda a Alquimia, e a alquimia da criação literária não é diferente, para entender o que acontece é preciso compreender estas palavras de Raimundo Lúlio: Deves saber, meu filho, que o curso da natureza é transformado, para que tu (...) possas ver, sem grande agitação, os espíritos que se evolam (...) condensados no ar, sob a forma de diversas criaturas ou seres monstruosos que vagueiam de um lado para o outro como nuvens. São palavras misteriosas, mas não há outras melhores para se iniciar na transfiguração da vida pela arte. É por isso que, como eu disse: Andara é lugar de sonhar. E eu digo: A viagem a Andara não tem fim. Porque depois de mim, outros, que vierem, poderão dar continuidade à viagem a Andara e habitar seu território, com outros livros, outros sonhos, outros seres de espanto.


Os críticos têm sido generosos em elogios aos livros de Andara. Leo Gilson Ribeiro, em entrevista a O Estado de São Paulo, após o lançamento de Viagem a Andara (Iluminuras, 1988) que lhe valeu o Grande Prêmio da Crítica da APCA, disse: Quem escreve como Vicente Cecim hoje em dia na França, na Inglaterra. Ele tem um talento desmesurado. E por ocasião do lançamento de Silencioso como o Paraíso (Iluminuras, 1994), completou: A fulminante trajetória literária de Cecim, que se iniciara com o belo, poético e enigmático poema em prosa Viagem a Andara oO livro invisível, prossegue com um livro, se possível, mais rico e fascinante ainda: Silencioso como o Paraíso. Um dos mais perfeitos livros surgidos no Brasil nos últimos dez anos, imbuído de poesia, encanto e o que Guimarães Rosa chamava de peregrinação álmica (da alma). Não foi a primeira vez que os críticos evocaram Guimarães Rosa ao falarem da sua obra.

Muito me alegra a sua companhia, mas é evidente que se há ecos dele em Andara, são desprezíveis. Guimarães Rosa é infinitamente superior a tudo o que foi escrito em ficção na língua portuguesa, incluindo Clarice Lispector, a enfeitiçadora de palavras, e o Machado de Assis daquele inacreditável, lunar, Memorial de Aires, escrito, já no fim da vida, com uma serenidade encantatória assombrosa, como se diz que o arqui-anjo Bach compunha as suas últimas obras.


E ao que você atribui essas aproximações que fazem da sua obra com Guimarães Rosa? E isso em vários pontos do país. Por exemplo, o crítico gaúcho Antônio Hohlfeldt, no Correio do Povo, escreveu: Depois de Guimarães Rosa, o paraense Vicente Cecim é o responsável por um dos mergulhos mais fantásticos e essenciais que a literatura brasileira já realizou sobre o sentido do homem. E Oscar D’Ambrosio, no Jornal de Tarde, de São Paulo, não deixou por menos: Ler Viagem a Andara é penetrar em narrativas poéticas subversivas e míticas que trazem à tona, sempre renovado, o aforismo roseano: Viver é perigoso.

Talvez seja é porque são literaturas de invenção de linguagem, ou porque minha escritura tem a mesma má intenção da de Guimarães Rosa: abolir as fronteiras artificialmente demarcadas entre a prosa e a poesia. Mas, talvez, principalmente, porque Rosa fez com o Sertão a mesma coisa que eu estou tentando fazer com a Amazônia: transmudar, ele, o Sertão, eu, a Amazônia, no que eu chamo de regiões metáforas da vida.


Você já anunciava esse seu projeto em Flagrados em delito contra a noite, o Manifesto Curau que lançou em 1983. Nele, você dizia: Aqui, procuro um nome numa região similarmente deprimida e asfixiada como a Amazônia. Um nome exemplar. E uma região real e inventada igualmente exemplar. Falo do Sertão de João Guimarães Rosa. (...) Em sua geografia, como nenhum outro, Guimarães Rosa soube fazer o encontro revelador do seu destino individual com o destino da sua região, mais ainda, soube transformar esta região numa metáfora de toda a vida. Nele, em todos os seus livros-salmos, livros-santos, livros-rituais de iniciação na existência, falam mitologias pessoais. E falam também as mitologias da sua região.

Logo o Flagrados em delito contra a noite/Manifesto Curau vai completar 20 anos de lançado (1983-2003), mas a sua Palavra principal, aquela que faz uma auto-acusação grave, pois nos acusa de sonharmos pouco ainda que vivamos numa região em si mesma naturalmente onírica, pouco foi ouvida. Praticamente quase nada mudou desde então, nesse sentido. Assim como a literatura de Andara, que logo chegará aos seus 25 anos de invenção (1979-2004), semeou muito pouco do que pretendia com sua Presença, mas aqui provavelmente a culpa é minha: eu apenas consigo fazer um esboço do que poderia ser a invenção de Andara. Por isso, aguardo pelos que virão, que sejam melhores dotados. Poeticamente, politicamente, insisto no que foi dito no Manifesto Curau: - Nossa História só terá realidade quando o nosso imaginário a refizer, a nosso favor.


Você se empenha nisso em sua literatura, pelo que se vê nos seus livros.

Mas não é só na literatura, também na vida, que mesmo oculta em si mesma sempre nos permite entrever que é sempre mais secreta e mais bela que a literatura: a Literatura quer a amplidão, a ampliação e provoca estranhos milagres nas fronteiras das impossibilidades da Vida, mas é precisamente nela, vida, vivendo, nos vivendo em nós, e certamente também escrevendo, que se corre o risco de obter a Revelação essencial: a de que o natural é sobrenatural e sua versão refletida num espelho: a de que o sobrenatural é natural. Essa consciência é o alimento, o Único, que devesse nos nutrir enquanto seres e enquanto criadores, e o que dá sentido à literatura.


A crítica parece perceber bem isso nos seus livros. E já há algum tempo. Mais uma vez aqui citado, Leo Gilson Ribeiro, por exemplo, escreveu uma página no Jornal da Tarde de São Paulo após o lançamento das suas primeiras obras, intitulada O universo de Vicente Cecim criado por inspiradas metáforas e alegorias, em que dizia: Há um real submerso no homem que a literatura linear, de mera denúncia da disparidade social, não alcança e quase como o grande visionário, o poeta Novalis, Vicente Cecim também confirmaria que je poetischer, umso wahrer: quanto mais poético, mais verdadeiro.

Essa comparação com Novalis, um poeta do sublime, me deixou atordoado por alguém tempo, sem conseguir escrever nada. Foi um exagero do Leo Gilson Ribeiro. Mas enquanto declaração de princípios, sim: é isso mesmo o que busco e no que creio.


Mas não é só ele. A revista Vogue também disse: O lírico, o
fantástico, a imaginação em sua total liberdade: a linguagem de Cecim é poética e única. E Benedito Nunes, escrevendo sobre o seu livro Os animais da terra, disse: Uma invenção poética. Que melhor denominação para este texto libertário, insurrecto?

Sim, mas o preço de ter feito essa opção por uma linguagem que admite o poético e transgride e dilacera a camisa de força da prosa na ficção é bem grande.


E a alegria não deve ser menor. Por exemplo, o que você sente quando lê coisas como a que escreveu sobre a sua obra Carlos Emílio Correa Lima no Jornal do Brasil? Ele afirma: É provável que seja a melhor literatura fluindo no Brasil. E há comparações entre você e autores que são verdadeiros clássicos modernos de várias línguas, como Nietzsche e Láutreamont, que deixariam qualquer escritor feliz, como a que faz Moacir Amâncio em O Estado de São Paulo: Lembra Zaratustra e Maldoror e se esses livros são poesia, a prosa de Cecim não seria outra coisa. O fascínio sobre o leitor é permanente.

O que não impede que curiosos desastres aconteçam. Por exemplo, o livro Ó Serdespanto, editado pela Íman, de Portugal, havia sido oferecido antes ao Samuel Leon, da Iluminuras, de São Paulo, que já havia editado as minhas duas reuniões de livros de Andara anteriores: Viagem a Andara, o livro invisível e Silencioso como o Paraíso. Samuel é um editor criterioso, que lê o que edita, eu sei. Mas às vezes não basta a vontade do editor: existe uma economia, umas leis de mercado editorial, uns vícios e umas estruturas mortas arqueológicas que se erguem entre o livro e o leitor. Samuel me falou algo assim, tentando me explicar o fenômeno: Estás escrevendo cada vez melhor, Vicente, mas nós temos um problema: os leitores brasileiros têm preferências muito rígidas, ou gostam de prosa ou gostam de poesia, e como nos teus livros estás cada vez mais abolindo essas distinções, eles não sabem do que se trata, acham estranho. Creio que Samuel estava certo, afinal, pelos anos de convivência, desde 88, já havíamos nos torna bons amigos. Entendi a mensagem. Foi como se ele estivesse me dizendo que os meus leitores ainda estão por nascer e me pedisse paciência. A paciência de ser póstumo. O livro finalmente saiu, mas saiu em outras circunstâncias culturais: Portugal não é o Brasil, que é grande e lê pequeno, Portugal é pequeno mas lê grande: lê esse abismo obscuro cintilante que é Fernando Pessoa, lê o poeta complexo que é Herberto Helder, lê as arriscadas aventuras de linguagem de Maria Gabriela Llansol e já é a Europa, aquela Europa a quem foi oferecida a libertação da Razão Maníaca pelo Dadá, pelo Surrealismo, onde a ficção que se lê é Kafka, Beckett, Proust, Joyce, o Musil incalculável de O homem sem qualidades, o Hermann Broch sonâmbulo de A morte de Virgílio, esse outro sonâmbulo que é o Bruno Schulz de Sanatório sob o signo da clepsidra e de As lojas de canela, o Julien Gracq supremo do alegórico O litoral das Sirtes, belo como um Kafka paralelo a Kafka, o Incomparável, o Dino Buzati também kafkiano a seu modo de O deserto do tártaros, o iconoclasta maravilhoso que é Withold Gombrowicz, o autor de Trans-Atlântico e de Bakakai, o Breton de Nadja, romance, poema, invocação xamânica e nada disso porque se trata da própria vida como realidade e sonho, juntos, captados para dentro das páginas de um livro, e sobre tudo isso seguem pairando as asas que jamais pousam para um instante sequer de repouso de Lautréamont, agitando aqueles ares com seu Os cantos de Maldoror - para citar só alguns dos mais recentes, dos mais próximos de nós. Porque se fôssemos mais longe, até Jonathan Swift, até Rabelais, até Sade, até John Bunyan, até Dante, onde iríamos parar?


Essas dificuldades levaram à edição do livro em Portugal e não no Brasil?

As dificuldades aumentam na medida em que não só os livros de Andara, mas também os de outros autores brasileiros que não pactuam com as concessões do mercado editorial aumentam suas dificuldades para o leitor que não se doa suficientemente à literatura, talvez porque não ame suficientemente a literatura, talvez porque não ame suficientemente a si próprio, talvez porque não ame suficientemente a vida, não sei. Não é só viver que é muito perigoso, como disse Guimarães Rosa: escrever também é muito perigoso. Mas aqui, repara, temos um paradoxo: é preciso não esquecer que os livros de Andara foram publicados primeiro no Brasil, pela Iluminuras, com expressiva receptividade da crítica, e só depois é que saíram em Portugal. Como se explica isso? Teria a literatura de Andara andado rápido demais, deixando os leitores brasileiros para trás?
Emparelhou o passo com os leitores portugueses? Leitores mais qualificados: editores mais qualificados: escritores mais qualificados: essa é a sequência em que as coisas devessem se dar. Podendo ser também na ordem inversa. Sem terra para construir uma casa, sem casa para morar nela, onde colocar uma estante de livros? Nós precisamos sentir uma Grande Fome de tudo, fazermos jejum até não suportarmos mais a nossa fome de uma revolução que dê às pessoas acesso ao feijão e ao sonho, palavras que fazem lembrar o título de um livro hoje quase esquecido de Orígenes Lessa.


Bem, e aconteceu que Andara, com o lançamento lá do seu Ó Serdespanto, acabou por ter, também, uma entusiasmada acolhida da parte dos críticos de Portugal.

Foi, aconteceu.


O mais surpreendente é ler de um crítico tão bem informado, como o filósofo Eduardo Prado Coelho, esta declaração: Aluno de História da Cultura Medieval, cheguei à prova oral sem saber quem era Raimundo Lúlio. Nas semanas seguintes, este nome aparecia-me em todo o lado - uma verdadeira perseguição. E pode ser que suceda o mesmo com Vicente Franz Cecim. Conheço razoavelmente bem a literatura brasileira, tenho muitos amigos brasileiros que me mantêm informado, mas nunca me lembro de ter visto mencionado, ou lido uma linha, de (ou sobre) Vicente Franz Cecim. Até que António Cabrita resolve editar um livro intitulado O Serdespanto. E o espantado sou eu. Uma extraordinária revelação! Leo Gilson Ribeiro fala-nos, referindo um Guimarães Rosa que obviamente está presente nestes textos, em peregrinação álmica (da palavra alma), e a expressão está certa para nos dizer a estranheza, a perturbação, os momentos de arrebatamento que nos podem vir destes textos inclassificáveis, que oscilam entre uma espécie de deliberada monotonia do ser e o sentido golpeante das cintilações verbais. A citação foi um pouco longa, mas necessária para situar os leitores no impacto da reação do crítico.

Isso só prova a enorme distância cultural que mantemos de Portugal. Só superada pela que mantemos em relação aos outros países da América Latina. Sabemos quem foi Borges, o argentino, pelo menos, mas observa a expressão remota, buscando longe um saber desconhecido, que aparece no rosto de um leitor brasileiro quando se pergunta a ele: quem foi César Vallejo? E Vallejo é simplesmente o maior poeta deste nosso subcontinente, em todos os tempos. Mas, peruano, coitado. E onde fica o Peru? Alguém sabe?


O problema, então, não está localizado unicamente na Escritura que você pratica nos livros de Andara, nem no próprio universo inusitado que seus livros visíveis de Andara estão criando. Existem graves barreiras culturais.

Sim, muito graves. O surgimento de Andara, como território verbal onírico que escava o solo da realidade, para dela emergir, já que falamos de Borges, é como aquela hipótese que ele propõe sobre o Castelo de Kubla Kan: é algo que está tentando nascer, existir na vida, e já fez suas primeiras tentativas. A primeira, quando Kubla Kan sonhou o castelo em pedras e iniciou sua construção, mas foi impedido de concluir a construção e do castelo só restaram ruínas. A segunda, quando Coleridge sonhou o castelo de Kubla Kan em palavras, mas ao despertar, interrompeu o poema sobre o castelo para atender seu alfaiate, e foi punido, por isso, com o esquecendo do restante do poema, que também ficou inconcluso. Borges então se pergunta, nos pergunta: qual será a próxima forma que assumirá isso que se apresenta como o Castelo de Kubla Kan quando tentar mais uma vez irromper na vida? Talvez por ser também uma hipótese extraviada, um Lugar de Todos os Lugares, ou de Lugar Algum, Andara atravesse as águas do Atlântico sem naufragar.


Sim, mas as ondas que faz são bastante agitadas, quando chegam na praia. A crítica Regina Louro, que citou Ó serdespanto como o melhor lançamento do ano, em Portugal, escreveu no jornal Público: É um livro total, na sua fusão de poesia, prosa, viagem utópica, divagação onírica, pensamento filosófico, reinvenção da palavra e reinvenção do mundo. Uma obra assim pode transformar a vida de quem a lê, se quem a ler estiver disposto a deixar-se transformar; mas, mesmo sem correr o risco dessa entrega, é impossível permanecer indiferente ao poder mágico da palavra de Cecim, palavra livre e vagabunda que cria uma cosmogonia própria, a um tempo estranha e familiar, reconhecível. Chamar-lhe inclassificável é, talvez, cobardia. Há um nome para esta espécie - rara - de acontecimentos, mas é um nome ousado e, nestes tempos de suspeita, pronto a ser banido: estamos perante um livro sagrado. Não importa quem o escreveu: foi escrito por um visionário.

Foi uma leitura vertiginosamente generosa.


E o que você diria do que escreveu o crítico, também português, Manoel de Freitas, no jornal Expresso? Cito alguns trechos mais expressivos: Há livros assim, que dispensariam - num mundo ideal - o lúgubre ofício da crítica. Livros que começam por dizer que: alguém vive, alguém escreve// Esse é o ponto de partida, o ponto de chegada. Alarmada, a nossa competência literária pode, quando muito, balbuciar o nome de Mallarmé e o seu maiúsculo projecto: O Livro é a vida? Não, o Livro não é a vida. É a outra vida (pág. 9). Mas permaneceremos incapazes de verbalizar o inconfundível fulgor desta obra de Vicente Franz Cecim. (...) Houve já quem falasse em Amazónias, transfigurações natais de um paraense, quando uma voz destas excede qualquer regionalismo básico. Também Herberto não é a ilha em forma de cão sentado ou Pessoa a Rua dos Douradores. O cosmos, esse, fica-lhes demasiado bem. (...) São raros os livros que, como Ó Serdespanto, elidem perguntas e respostas, abrindo-se à desmesura e à estranheza: Benvindo ao estranho mundo (pág. 129). Poderíamos, no entanto, esboçar (e não mais do que isso) a genealogia em que este livro entronca. Nesse caso, teríamos de evocar essa espécie de comunidade de que fazem parte os nomes de Michaux, Herberto Helder ou Maria Gabriela Llansol. Contudo, a escrita de V. F. Cecim não se confunde, prossegue: amanhedescendo, e torna subitamente mais verdadeira a certeza de que: não há nada a dizer de um poema, pois é ele mesmo o dizer supremo (Eduardo Lourenço).

E com isso voltamos ao início desta nossa conversa. Tu me disseste: Vamos falar um pouco mais a respeito de Ó Serdespanto. E eu te disse: um livro não sabe falar outra linguagem além daquela em que foi escrito. O respeito de um crítico pela integridade essencial de certos livros, é o que dele mais esperam certos escritores que se propõem a desafiar os dentes da Engrenagem triturante do mercado de consumo editorial. Escritores fantasmas: Literatura fantasma.


Você insiste em afirmar que o natural é sobrenatural. E novamente diz que o que faz é literatura fantasma. Você está fazendo só literatura, ou propondo algo mais: algo iniciatório? Você quer mudar a vida com os seus livros? Pelo menos o crítico Oscar D’Ambrosio, aqui no Brasil, muito antes da crítica portuguesa Regina Louro, achou que sim, e que você consegue isso. No artigo Os divinos autores da década que escreveu no Jornal da Tarde de São Paulo, ele garante: Os textos de Cecim fundem profano e sagrado. Após ler Vicente Cecim a transformação interna do leitor é inevitável.

Eu projeto à minha frente uma Utopia libertária. Eu sonho com uma literatura além da literatura, como Nietzsche sonhava com um homem além do homem. Por isso prenuncio o advento de uma Literatura Fantasma. Mas, antes, ainda teremos que deixar para trás a Literatura como hoje a maioria de nós, escritores, ainda a praticamos, e como a quase totalidade dos leitores ainda a leem, e atravessar a ponte oscilante da Escritura. Então, depois, muitos passos ou não-passos adiante, ou atrás – pois tudo pode muito bem consistir em um mero se desfazer dos nossos lastros culturais - teríamos livros, ou já não-livros, como quer ser o Livro Invisível de Andara, algo que foi literatura, mas se libertou de si mesmo e se tornou capaz de revelar minuciosamente o homem e seu mistério ao mistério do homem: digo isso assim: A literatura praticada como ontologia, a palavra praticada como vida. Sonho com que esse algo que terá poderes mágicos, imensos poderes, capazes de transpassar as Aparências do Real. Nas desorientações em que me guio, e das quais me nutro, com outras bocas, menos e mais humanas, lembro do que disse Novalis: Só a insuficiência dos nossos sentidos nos impede de perceber que vivemos num mundo feérico. Para mim, e não só os artistas, os criadores, também todas as pessoas, não devemos nos contentar com menos. Isso me faz lembrar John Coltrane, que queria fazer milagres com o seu sax através do jazz. Ele disse uma vez, pouco antes de morrer, que eu prefiro chamar de fenecer assim como prefiro dizer florescer em vez de nascer, que queria fazer uma música – que, também, estaria certamente além da música - que quando um amigo estivesse desempregado, ele tocasse e o amigo teria emprego, que quando alguém estivesse doente, ele tocasse e a pessoa ficaria curada, que quando estivesse chovendo, ele tocasse e fizesse sol.


Assim, o Serdespanto não sentiria tanto o espanto de nascer.

Assim, finalmente, nos pudéssemos ser Seres de Alegria. E contaminar a Vida não mais tanto com as nossas lágrimas, mas com essa Alegria.


Você está terminando de escrever um novo livro visível de Andara: O escuro da semente. Todo desenrolar literário, que faz parte de um só projeto, tem lá seus níveis, seus estágios. Em que estágio está esta nova obra, se é que devamos classificar assim, ou mesmo classificar?

Para que classificar, o que se ganha com isso? Já classificamos os insetos, as pedras preciosas, os sentimentos, os gêneros literários. E o que ganhamos com isso? Só dividimos mais o mundo, a vida, cada vez mais a extraímos do Um e a lançamos ainda mais fragmentada no Vários. Este livro, agora, prossegue as buscas de Andara, que já vinham sendo feitas, seguindo rastros apagados, esquecidos pela espécie humana, muito inconsciente desde o primeiro livro, A asa e a serpente, de 1979, o que agora me parece se fazer cada vez mais claramente, pelo que eu chamo de O Um Vários: ponto de fusão de todas as dualidades. Onde todas as aparências cedam profundamente a uma Unidade, sem exigir que o real abra mão de sua Diversidade. Dobras dentro de dobras, ora se desdobrando, ora se redobrando. Isso é a Viagem a Andara, isso é o livro invisível convivendo com os livros visíveis de Andara. Enfim: uma Harmonia Assimétrica, uma Nudez Vestida, em todas as coisas. Relê aquele trecho, que ficou como epígrafe desta entrevista, de K: O escuro da semente, este novo livro escrito de Andara que eu estou sonhando, escrevendo, sonhando, ele em mim se sonhando, emergindo, não sei de onde, nunca se sabe exatamente de Onde – como o castelo de Kubla Kan, na hipótese de Borges. Então, estou jorrando esse livro para fora de mim, para tentar tornar mais claro isso, para mim e para os outros, isto: Nós nos tornamos seres viciados em ver as diferenças nas semelhanças. Está errado, essa é a visão mais superficial da vida: tente ver a Semelhança nas diferenças, é só assim que conseguíssemos ver nas profundidades mais escuras do coração da condição humana, de outra forma só iremos nos tornando seres cada vez mais cegos, homens-toupeiras, no aquém do homem, e nem a Toca de Kafka nos servirá de abrigo. Então, não classificando, mas arborizando passo a passo a escritura de um livro, deixando que ele se amplie ou se retraia, espontaneamente, porque se trata de uma semeadura de palavras sem garantias de que teremos boa safra, o que faço é observar as metamorfoses por que vai passando a obra, que como bom filho da Floresta Sagrado chamo de versões: semente, arbusto, árvore, floresta. Poderia ir também da lagarta à borboleta, seria a mesma coisa. São metamorfoses que estão aí, ao nosso redor, no mundo natural, e no entanto sobrenatural, isso nada tem a ver com as classificações do mundo conceitual. Nesse outro mundo, observa. O que vês? Imensas aves do mal se voltando contra o próprio Mal que as criou em consequência do egoísmo perverso, perversor, pervertido do mundo civilizado, esse mundo oco, que escava cada mais fundo as fronteiras entre ricos e pobres. Para dar um só exemplo abrangente. Os acontecimentos que agora eu vejo, me dizem que ainda estamos muito atrasados. Que estamos ainda na versão arbusto do que a vida poderia ser, mas que, tendo perdido a semente original, não chegaremos à versão arvore e muito menos à versão floresta. Nossas metamorfoses modernas parecem querer nos afastar cada vez mais de nós próprios, quando deveria ser exatamente o contrário. Se impõe reverter esse caminho, se impõe desviar pelo saber, como, citando alguém que não lembro, disse numa entrevista talvez o mais sábio dos diretores de cinema, Robert Bresson. Eu proporia ainda mais: desviar de todo o saber, por um outro saber. Que saber seria esse? Esse não-saber? É isso que Andara busca. O que, quem sabe, o Zen já achou, quando nos recomenda Ouvir com os olhos, ver com os ouvidos. Suspeito que pelos velhos caminhos tantas vezes navegados, só acabaremos chegando à Terra Devastada do Rei Pescador da Demanda do Santo Graal, a Waste Land de Eliot, à Terra Gasta.


Se todos nós somos seres de espanto, o que você acha que mais nos espanta? O que lhe espanta? A vida é um espanto? Não é um milagre?

Os milagres não são coisas separadas da vida, toda ela é um milagre, é O Milagre. Tudo é epifania, quer dizer: toda essa irrupção do sagrado na Natureza. Não se pode entender nada se não se entender primeiro isso. E tendo entendido isso, o que mais pode nos espantar? Tudo está contido no próprio espanto de ser, de ser-se. O que me espanta é que nós, as pessoas, demoremos tanto tempo para nos dar conta desta evidência: que todos somos seres de espanto. Todos somos O Vazio que transborda e enche a Vida de formas. Sabes exatamente onde nós estamos, agora? Num Lugar Sem Lugar que é ao mesmo tempo o Lugar de Todos os Lugares. Mestre Eckhart disse um dia: Ali onde os anjos supremos, a mosca e a alma são semelhantes. Eu já citei essa frase de Eckhart num dos livros de Andara, foi em Os animais da terra, de 1981. Acho que escrevi esse livro só para levar essa frase a um número maior de pessoas. Os benefícios da compreensão do seu sentido profundo podem ser imensos.


Como é seu impulso literário? Vem de inspiração, sonhos, lembranças? O que move você a escrever um novo livro?

Eu não escrevo o Livro, eu apenas pareço estar escrevendo o livro, mas isso é mera aparência: o livro é que se escreve através de mim. Sou apenas um Instrumento. Um outro Kubla Kan. Um escritor vaidoso da sua obra é um perfeito ignorante, e é uma contradição nos termos.


O que você prefere ler, quando não está empenhado nos seus próprios projetos?

Tudo. O rosto de uma pessoa que passa, uma lembrança que volta, as pedras, uma marca de passo num caminho, uma ave caída no chão, suas asas já virando terra, outra ave ainda no céu, a chuva, as lágrimas, a água correndo na calçada depois da chuva, a noite estrelada, que aprendi a ver melhor com Van Gogh, sonhos, finjo ler mãos, leio as antigas ilusões perdidas, que ensinam muito quando relidas, leio formiguinhas carregando folhas fazendo de contas estou só olhando, a lua numa gota de orvalho, como o mestre zen Dögen, e o pensamento do próprio Dögen, e às vezes até os livros que ele escreveu, e os de Beckett, Kafka, que prefiro ler cintilando no escuro transformado em homem vaga-lume, Schopenhauer, leio ao mesmo tempo Plotino falando do Uno e Nagarjuna falando da Originação Dependente e entendo que não foi mera coincidência eles terem vivido ao mesmo tempo no século III DC, cada um num hemisfério do cérebro da Terra, tento ler os sentimentos das pessoas quando estão tristes para saber como posso ajudar, tento ler os sentimentos das pessoas quando estão alegres, é uma leitura mais fácil, para saber como posso não estragar, gosto de reler os meus filhos, gosto de reler os meus livros, estou sempre fazendo isso porque se comecei a escrever foi para poder ler os livros que eu gostaria de ler e não achava na vida porque ainda não haviam sido escritos, leio também as notas da música de Bach como palavras de uma frase misteriosa nos falando a Frase mais misteriosa que já foi lançada no ar por um homem. Enfim, leio todo o visível enquanto posso, antes que, invisível, comece a ser lido, como dizia São Paulo: Agora vejo através de um cristal escuro, mas amanhã verei como sou visto. Olha aqui, o importante é entender que os livros, esses que se escreve, não devem ser a nossa leitura favorita, que a nossa leitura favorita deve ser diretamente, mas sem dúvida sempre de surpresa, de soslaio, o Livro, a vida. Só lendo primeiro este é que se pode ler aqueles, como consequências. Ainda que seja verdade, também, que A vida imita a arte, como queria Oscar Wilde.


A crítica literária não lhe interessa (- Não escrevo para agradar, escrevo para libertar o homem, a vida.). Por que? Ao confessar isso, você mesmo não se torna uma espécie de crítico?

Grande parte da crítica ainda não aprendeu a ler o Livro, a vida, como poderia ler essas coisas tão pequenas, os livros que os homens escrevem? Eu espero uma literatura que seja cada vez mais capaz de fazer, enquanto se faz, a sua própria crítica, como o Dom Quixote de Cervantes, e autores como Kafka, que enquanto escrevia sua obra que não nos cabe julgar, porque devemos apenas agradecer por ela existir, como disse Alexandre Vialatte, mantinha um Diário rigoroso, minucioso do que significava para ele estar vivendo, ser um Serdespanto. Mas não tenho nada contra os críticos, nenhuma aversão. Até gosto deles, mesmo que finjam serem outra coisa, percebo que são homens como eu. Só não me submeto. Na verdade, quando disse que não escrevia para agradar estava me referindo mais ao leitor. Eu não gosto de ser lido. É estranho, não é? Acho que é porque acho um desperdício as pessoas estarem lendo livros em vez de estarem lendo, instantaneamente, a própria vida, que é mais emocionante, muito mais secreta e mais bela do que qualquer livro que se possa escrever.


Para terminar: o que é para você a leitura?

Ler é nutrir. Só devemos ler o que nos nutre. Não somos obrigados a ler, como um papel a desempenhar na vida. Mas que sirvam primeiro o feijão a quem tem fome, depois virão naturalmente os sonhos. Não se pode exigir que as pessoas leiam enquanto correm pelas ruas em busca de alimento, virando lixo. Aqui devemos inverter urgentemente Oscar Wilde, quando dizia: Me deem-me o supérfluo e eu dispenso o essencial.


O que você quer dizer com o natural é sobrenatural e vice-versa?

Cecim: Eu não quero dizer nada e estou dizendo isso. Foi mais ou menos o que disse um vez John Cage, que fazia música de silêncio. Mas por que tu estás me perguntando isso sobre o natural ser sobrenatural e o sobrenatural ser natural, como se já não soubesses? É claro que as coisas são assim. A tua pergunta me espanta.


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