Google Website Translator Gadget

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Tarkovski: Esculpindo no Tempo VICENTE FRANZ CECIM
























A imagem cinematográfica é a observação

de fenômenos que se desenrolam no tempo.

ANDREI TARKOVSKI




           

            Passemos algum tempo na companhia de um homem bom: Andrei Tarkovski.
            Poeta, mago, singelo e amigo.
            Talvez só um solitário cão vadio que comece a segui-lo pelas ruas da cidade, movido pelo mais inocente afeto, lhe faça mais bem.

            Andrei Arsenyevich Tarkovski viveu entre nós de 4 de abril de 1932 a 28 de dezembro de 1986. Pouco mais de 50 anos de vida humana, mais do que suficiente para se lançar profundamente Eternidade adentro. Filho do, como ele, também comovente poeta Arsenii Tarkovski, em filmes sempre fez ouvir a voz do pai. Tarkovski estudou e se formou em Geologia, indício do seu forte amor por Geo, a mãe Terra, presença essencial nas suas imagens – que atuam sobre ela como uma carícia. Para acariciá-la melhor, deixou essa profissão e buscou o Cinema: em 1956, foi estudar no Instituto Central de Cinema da então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Seu primeiro filme, o média metragem de 44 minutos realizado como conclusão dos estudos, foi O Rolo Compressor e O Violinista. E já em 1962 recebia o Leão de Ouro do Fstival de veneza com seu primeiro longa metragem, A Infância de Ivan. Desde então seus filmes foram num crescendo de beleza e mistério: Andrei Rublev, em 1966, sobre a vida do pintor russo medieval de ícones,  Solaris, em 1972, fábula que transcende a ciência e se faz como um filme sobre a permanência do Amor, O espelho, em 1974, imersão na própria infância filme, Stalker, em 1979, outra, alegórica, imersão desta vez no próprio segredo da Vida, apresentada como um a travessia de uma Zona oscilante entre a Luz e a Sombra.  Assim também o Cinema de Tarkovski oscilava - desde, sobretudo, Andrei Rublev, discriminado pela propaganda do materialismo dialético nos países da URSS prestes a desmoronar como “cinema místico” - entre a liberdade que seus filmes tinham, banhados pelo delumbramento com que eram vistom em todo o mundo, quando conseguia atravessar as interdições da Censura Oficial do regime comunista russo – e a perseguição sofrida pelos censores. Tarkovski escreveu seu encantatório livro sobre o Cinema, para ele a arte de “Esculpir no tempo”. Sua visão da Vida e da Arte exposta com palavras diretas e sem temor intensificaram as pressões – seus filmes eram oficialmente programados quase sempre para serem exibidos apenas fora de Moscou e das outras capitais como as da Ucrânia, Geórgia, Chechênia, países submetidos à rede de controle da União das Repúblicas Soviéticas – e em poucos cinemas, em quanto mais distantes subúrbios, melhor. Consegue permissão para sair da URSS e ir receber um prêmio internacional – vigiado por agentes da KGB, a CIA soviética. E não regressa mais, com a ajuda de amigos e admiradores europeus. Dura prova – sua família é proibida de ir ao seu encontro e usada como meio de chantagem, para inibir, coibir, sua livre expressão nos filmes que ainda faria no estrangeiro. Apenas mais dois: Nostalgia, em 1983, feito na Itália – onde a saudade da terra natal atingi intensidades raramente vistas em uma obra de arte – e O Sacrifício, em 1986, na Suécia. Feito quando Tarkovski já sabia que estava mortalmente envenenado pelos que os médicos chamaram de câncer, mas que eu chamo pelo doloroso nome certo: Tristeza. E do qual o, como ele, também mestre do cinema de transfiguração da vida, Ingmar Bergman, disse: - “Tarkovski fez o que eu tentei fazer a vida inteira em todos os meus filmes.”
            Para saber o que é o Cinema de Tarkovski, só vivenciando os seus próprios filmes. Mas as coisas que ele disse sobre o Cinema, a Arte e a Vida têm o mesmo poder, através das Palavras.
            Eis algumas delas:
            “Poderíamos dizer que o trabalho de um diretor de cinema consiste em esculpir o tempo. Assim como o escultor toma um bloco de mármore e, guiado pela visão interior
“de sua futura obra, elimina tudo que não faz parte dela.”
                “Em Stalker faço uma espécie de afirmação cabal: isto é, a de que basta o amor pela humanidade – milagrosamente – para provar que é falsa a suposição grosseira de que não há esperança para o mundo.”
             “Todo filme trazer o mundo real para a tela, mostrar o mundo como ele realmente é, para o espectador projetar-se emocionalmente na imagem e sentir até mesmo a aridez ou a umidade do ar”.
            “Nos produtos da indústria cinematográfica, na maioria das vezes a natureza não existe. A plateia é convidada a acompanhar um enredo sem prestar atenção à artificialidade do cenário. [...] A presença da natureza é fundamental.”
            “Como disse certa vez Dostoievski: A arte não espelha a vida. O artista não reproduz, produz. Cria a vida tal como ela não existia antes dele”.
            “Refém da eternidade, prisioneiro do tempo: nestes versos, Boris Pasternak
definiu com precisão a verdadeira condição do artista.”
           

            Falar do Cinema Segundo Tarkovski seria uma heresia, se não fosse uma prova de amor. E é com Amor, sim, que eu falo sobre ele.  


O sonho de ver como somos vistos: através de uma fina película transparente

vFcecim

         


            “Parece-me que Berkeley percebe a matéria como uma fina película transparente situada entre o homem e Deus.” Henri Bergson/ A intuição filosófica


            De certas obras de arte devemos nos aproximar com passos tímidos de aprendizes de viver. E sendo inúteis as aproximações frontais, pois mais as ocultam de nós do que as revelam, só quase nos resta a opção de um tatear no escuro a sua luz, de um esboçar balbuciante a sua compreensão. O Cinema de Andrei Tarkovski é uma dessas obras assim. Nos excede. E tudo o que dissermos dele ainda será insuficiente. Diferente é a experiência de nos iniciarmos diretamente em seus filmes. Quando sós, face a face com eles, sempre nos falam com ampla generosidade, se entregando profundamente, em retribuição ao nosso silêncio. Respeito e prudência, ao falarmos deles, então se impõem. Deixar que eles se digam. E, previamente, apenas deles falar por alusões. A alusão aqui eleita é a frase acima de Bergson sobre Berkeley, que nos remeterá à própria ideia central do pensamento de Berkeley mais adiante. E assim, passo a passo, quase sem nos darmos conta disso, teremos dito algo sobre o cinema de Tarkovski. Mas obliquamente: por reflexos de vozes ecoando em espelhos. A frase de Bergson já nos dá o exemplo: o hesitante parece-me com que ele a inicia é signo de humildade e aceitação das Incertezas. E, precisamente por isso, também se aplica ao cinema de Tarkovski. Aqui, a fina película transparente de que Bergson fala se referindo a Berkeley vem se fundir à fina película transparente que é um filme: sua película , sua matéria prima, esse Olho aplicado à epiderme do Real, destinado a receber as impressões que a vida - Ela, que no dizer de Heráclito: Ama ocultar-se - se consentir nos doar, nos consentir a graça de ver. Já haveria, num filme qualquer, Mistério em abundância para esse Olho mecânico, o olho da câmera, registrar, se visse apenas por si, isolado de toda presença humana. Tamanha é a Presença das coisas em si mesmas diante de nós, se dizendo a nós: Esse est percipi/Ser é ser percebido - nos diz Berkeley. E quando o olho humano vem fazer companhia a esse Olho mecânico, vem humanizá-lo, digamos assim, no sentido pleno das visões, intuições, carências, indagações, ilusões, possíveis saberes, esperanças, miragens, que fazem dele um olho humano, e se isso se dá não mais num filme qualquer, mas num filme de Tarkovski? Esse est percipere/Ser é perceber - nos diz Berkeley. Um filme de Tarkovski sendo então uma dessas raras oportunidades que nos são dadas pela Via Estética de confrontar - no sentido já dissimulado pelo uso mais ainda vivo na palavra, de colocar frente a frente - vida e homem, o percipi e o percipere, o percebido e o perceber. Bergson nos diz: Se 'percipi' é passividade pura, o 'percipere' é pura atividade. A fina película então é o elemento intermediador entre a epiderme do Real, que se entrega a Tarkovski em percipi, se deixando ser percebida, e lhe permite o ato de percipere, perceber e, o por ele percebido, nos revelar. Mas, a esta altura, ainda estamos falando da fina película que é um filme, ou imperceptivelmente já ingressamos no coração obscuro do nosso assunto: já nos surpreendemos falando da matéria como uma fina película transparente situada entre o homem e Deus? A ambivalência das palavras, ah: tanto nos naufragam como nos socorrem. E o que leremos a seguir, ao lermos a palavra doutrina, seja lido como sinônimo da palavra vida. Pois é implicitamente a ela, como visão de mundo de Berkeley, que Bergson se refere, quando nos diz: Dela nos aproximaremos se pudermos atingir a imagem mediadora (...) - uma imagem que é quase matéria, pois se deixa ainda ver, e quase espírito, pois não se deixa tocar - fantasma que nos ronda enquanto damos voltas em torno da doutrina e ao qual é necessário que nos dirijamos para obter o signo decisivo, a indicação da atitude a tomar e do ponto para onde olhar. É permitido ao homem, através da mediação da Arte, não somente percipere/perceber mas também dar a perceber aos outros homens o que, através da fina película transparente , percebeu? No cinema, em todas as épocas, a alguns isso foi consentido: Bresson, Ozu, Antonioni, Dreyer, mais recentemente a Alexander Sacha Sokurov e ao próprio Tarkovski. Diante do Abismo que é o Assombro de existirmos, humanos, face a face com a espessura e as transparências da Vida que nos habita e na qual habitamos, sutis como uma sombra, densos como um corpo, devemos ser gratos a eles, pela vertigem que em nós sempre despertam, pelas quedas para o alto em que sempre nos precipitam, nos impedindo de adormecer na desoladora fronteira que inventamos para nossas omissões, no passo que não damos, entre o Imanente e o Transcendente. Tarkovski entendeu o Cinema como a arte de Esculpir no Tempo. E no livro que escreveu com esse título, e não apenas através das imagens dos seus filmes, nos fala de uma urgência alarmante: - O homem moderno não quer fazer nenhum sacrifício, muito embora a verdadeira afirmação do eu só possa se expressar no sacrifício. Aos poucos vamos nos esquecendo disso, e, inevitavelmente, perdemos ao mesmo tempo todo o sentido da nossa vocação humana. Que vocação é essa? A vocação de uma entrega total, de um consentir permanente que luzes lampejem em nós, nos permitindo ver - mesmo que por breves clarões, na vida como numa escura sala de projeções, sacrificando nossas consolações vazias, nossas paixões condenadas a cinzas, nossa avidez de um agora efêmero - aquela que ama ocultar-se e que, em seu Pudor, é a Fonte permanente do nosso mais intenso fascínio? Clarões. Ainda que estonteantes, cegantes. Mas de uma cegueira que nos liberte de continuar vendo através de um cristal escuro e nos conceda outros olhos capazes de ver através dessa fina película transparente situada entre o homem e Deus - sabemos o que essa Palavra significa, em todas as suas metamorfoses. É esse o olhar que reivindicava Berkeley, segundo Bergson. E esse é o olhar que buscou Tarkovski, com seus filmes que são fendas abertas na espessura da matéria, e que ele, também, reivindica, quando afirma: - E o que são os momentos de iluminação, se não percepções instantâneas da verdade? Ou quando denuncia: - A moderna cultura de massas (...) está mutilando as almas das pessoas, criando barreiras entre o homem e as questões fundamentais da sua existência, entre o homem e a consciência de si próprio enquanto ser espiritual. São palavras que devemos manter acesas em nós quando as luzes se apagarem e os filmes de Tarkovski começarem a cintilar para os nossos olhos. Nesses Templos de um tempo sem templos em que podem se transformar as salas de projeções, ante filmes como os de Tarkovski, já não se trata de simplesmente ver, mas de penetrar profundamente, através da fina película transparente que o seu cinema nos oferece, até nos revelarmos a nós mesmos, e orando em silêncio:

           - Agora, abrir os olhos. Agora, começar a sonhar o sonho de ver como somos vistos.



Um poema de Arsenii Tarkovski

Primeiros encontros




Cada um dos nossos encontros
Foi para nós uma aparição divina,
No mundo inteiro, nós dois sozinhos.
Eras mais audaciosa, mais livre que a asa de um pássaro,
Estonteante como uma vertigem, corrias escada abaixo
Dois degraus por vez, e me conduzias
Por entre lilases úmidos, até teu domínio,
No outro lado, para além do espelho.

Quando chegava a noite eu conseguia a graça,
Os portões do altar se escancaravam
E nossa nudez brilhava na escuridão
Que caía vagarosa. E ao despertar
Eu dizia, "Abençoada sejas!"
E sabia que minha benção era uma ousadia,
Pois tu dormias, os lilases se estendiam da mesa
Para tocar tuas pálpebras com um universo de azul,
E tu recebias o toque sobre as pálpebras,
E elas permaneciam imóveis, e tua mão ainda estava quente.

Havia rios vibrantes dentro do cristal,
Montanhas surgiam por entre a neblina, mares espumavam,
E tu seguravas uma esfera de cristal nas mãos,
Sentada num trono ainda adormecida,
E – meu Deus! - tu me pertencias.
Acordavas e transfiguravas
As palavras que as pessoas pronunciam todos os dias,
E a fala se enchia até transbordar
De poder ressonante, e a palavra "Tu"
Descobria seu novo significado: "Rei".
As coisas comuns se transfiguravam,
Tudo - o jarro, a bacia - quando,
Entre nós como uma sentinela,
Era colocada a água, fluindo, nos separando.

Éramos conduzidos, sem saber para onde,
Como miragens, diante de nós recuavam
Cidades construídas por milagre,
Havia hortelã selvagem sob nossos pés,
Pássaros faziam a mesma rota que nós,
E no rio peixes nadavam correnteza acima,
E o céu se desenrolava diante dos nossos olhos.

E destino seguia os nossos passos
Como um louco de navalha na mão.




Nenhum comentário:

Postar um comentário